A MULTIPLICAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS
Morro dos Cavalos fica 30 quilômetros ao sul de Florianópolis. Até o início dos anos 90, no trecho bem às margens da BR-101, um pedacinho de terra era ocupado por uma única família. Hoje, a pequena aldeia está transformada em uma reserva 120 vezes maior.
Índio guarani nascido no Paraguai, Júlio Moreira partiu da fronteira com a mulher e seis filhos e chegou em Morro dos Cavalos entre os anos de 1967 e 1968. Eles foram os primeiros a habitar a região. E por muito tempo a forma de vida naquele lugar permaneceu quase que inalterada. No início da década de 90 havia 14 índios, todos da mesma família. Ninguém mais.
Foi somente com a interferência de ONGs que atuam com programas direcionados aos índios, a partir de 1992, que a realidade no local mudou. A chegada dos pesquisadores trouxe novos habitantes (a maioria do Paraguai, Argentina e oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A população atual está estimada em cerca de 200 indígenas – nenhum deles é descendente de Júlio Moreira, da etnia nhandeva. As terras hoje são ocupadas por índios de outra etnia, a mbyá.
Morro dos Cavalos também deu origem a novas aldeias. Oficialmente foram duas. Entretanto, dados extraoficiais, a partir do relato dos próprios indígenas, revelam mais que isto: outras 19 pequenas aldeias próximas a Florianópolis teriam ligação com a reserva.
O lugar é considerado estratégico, pelo fácil acesso, e se tornou referência a pesquisas. Duas teorias dividem especialistas: a que prega a manipulação da migração de índios por parte de antropólogos e funcionários da Funai; e os que defendem a vinda dos estrangeiros como uma dinâmica natural dos guaranis, capaz de garantir o reconhecimento da terra tradicional onde quer que seja, independentemente de fronteiras. E é justamente este conflito de teses que tem gerado questionamentos sobre a legitimidade do processo que reconhece Morro dos Cavalos como terra tradicional de índios.
Documentos a que o Diário Catarinense teve acesso reconstituem a história desde os anos 90. São pareceres e estudos oficiais que integram o processo de demarcação da terra indígena – um calhamaço de quase 2 mil páginas, dividido em três volumes. Um processo longo e ainda sem data para ser finalizado. Isso porque o caso é tratado na mais alta instância do Judiciário brasileiro.
Em janeiro deste ano, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a anulação dos estudos feitos até agora. O governo de Santa Catarina aponta falhas no processo que certifica a terra como indígena. Por três motivos: questiona a ocupação tradicional, contesta o laudo antropológico que propôs ampliar a reserva indígena e informa que o Estado não participou dos estudos.
O processo de demarcação tem como ponto de partida uma antropóloga de São Paulo, ligada à organização não governamental Centro de Trabalho Indigenista (CTI) – uma das ONGs mais influentes do setor no país. Maria Inês Ladeira, que já havia desenvolvido um programa de auxílio à regularização fundiária no Sudeste do Brasil, teve acesso à história da família Moreira. O contato foi com Milton, o único filho homem de Júlio Moreira (o patriarca morreu na década de 80). Na época, Milton morava em Biguaçu, próximo a Florianópolis, e as irmãs haviam se casado com não índios. Maria Inês enviou documento à Funai solicitando estudos para demarcar uma área. Ela sugeria 16,4 hectares, onde ficava a primeira casa dos Moreiras.
A pesquisadora solicitou a demarcação, foi contratada pelo órgão federal e influenciou praticamente todos os estudos de caso. No último deles, publicado em 2002, Maria Inês atuou como contratada da Funai e propôs ampliar a reserva para 1.988 hectares – área 120 vezes maior do que a pleiteada inicialmente.
Os estudos tiveram como base uma realidade diferente da registrada 10 anos antes, data do primeiro contato dela com os índios de Morro dos Cavalos. Incluía uma população recém-chegada. E para sustentar a tese de que o grupo era tradicional da região, ela os associou aos índios carijós (que habitaram o litoral na época da colonização, em 1500).
Para o Tribunal de Contas da União (TCU), entretanto, o crescimento habitacional em Morro dos Cavalos pode estar associado à necessidade das obras de duplicação da BR-101. Em relatório publicado em 2005, o tribunal cita que exatamente quando a ampliação da rodovia começa a ser cogitada, em 1995, é registrado o primeiro salto habitacional: a população quintuplica. O TCU, porém, não esclarece se a Funai e o CTI influenciaram na migração dos grupos indígenas.
Indiferente ao relatório do tribunal, o Ministério da Justiça aprovou o trabalho de Maria Inês Ladeira e, em 2008, reconheceu toda a área proposta como terra indígena. Ainda assim, a posse plena da terra aos índios depende de homologação da Presidência da República – o que não tem data prevista para ocorrer, principalmente porque o caso se desenrola em ações judiciais.
– Pela Constituição, para que seja considerada terra tradicionalmente indígena, deve-se levar em conta a ocupação em 1988, que não era a mesma de agora – defende o procurador-geral de Santa Catarina, João dos Passos Martins Neto.
Os argumentos de agora são semelhantes aos do governo de Luiz Henrique da Silveira, em 2005. Na época, a Procuradoria do Estado alertava o Ministério da Justiça sobre o suposto modus operandi das entidades de defesa dos direitos indígenas, dando a entender que não havia ocupação tradicional na área e que os índios foram incentivados a migrar.
Morro dos Cavalos, ainda hoje, é considerado o principal entrave da duplicação da BR-101. O trecho é o único de toda a extensão das obras, de Palhoça a Osório (RS), sem licença para sair do papel.