Da ONG CTI à alta cúpula da Funai
A premissa da transparência do serviço público é colocada em dúvida quando se analisa a forma como a Fundação Nacional do Índio lida com entidades do terceiro setor. As relações entre o órgão e as organizações não governamentais são contestadas inclusive por servidores. É um emaranhado de associações e parentescos que se sobrepõe à isenção de estudos como o de Morro dos Cavalos.
Na Fundação Nacional do Índio (Funai) as relações se confundem. A ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI), peça-chave no caso Morro dos Cavalos, atua dos dois lados: o de quem solicita os estudos e o outro, que autoriza. É que o CTI cede seus antropólogos e integrantes para os cargos comissionados do órgão federal.
Em carta aberta aos povos indígenas, uma funcionária concursada, com quase 30 anos de trabalho na Funai, fala em ocupação de “ongueiros” no alto escalão do órgão e cita o CTI como “a ONG do momento no quadro de comissionados”.
Explica-se: o atual chefe da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da fundação é Aluisio Ladeira Azanha, que trabalhou na ONG assessorando índios guaranis na regularização das terras ocupadas em todo o Brasil. Ele é sucessor de Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão na Funai. E ela foi presidente do CTI em 2001.
A apuração do Diário Catarinense revela ainda raízes bem mais antigas. Maria Inês Ladeira (que é irmã da mãe do atual diretor da Funai) teve acesso à história da família Moreira – a primeira a chegar na região de Morro dos Cavalos, que migrou do Paraguai no fim da década de 60 – e enviou carta ao órgão federal solicitando o início do processo de demarcação da área. O documento é de 1992 e já em 1993 a Funai autorizou a abertura dos estudos do caso.
Nesta mesma época, Gilberto Azanha – que é pai de Aluisio, cunhado da antropóloga, além de ser um dos fundadores do CTI – ocupava o cargo de coordenador-geral de Estudos e Pesquisas na Funai.
As informações da antropóloga Maria Inês Ladeira influenciaram o primeiro laudo sobre o processo da terra indígena Morro dos Cavalos, que foi publicado pela Funai em 1995 e propunha demarcar 121 hectares. Mais tarde, no início dos anos 2000, a mesma antropóloga foi contratada para coordenar o grupo técnico de um novo estudo. Foi quando ela propôs ampliar a área para 1.988 hectares – levando em conta não mais o início do processo, quando 14 índios de uma mesma família ocupavam o local, mas a nova realidade, que era a de um grupo de 200 indígenas sem nenhuma ligação com a família Moreira.
A proposta foi aceita e paga pela Funai. Paga porque a solicitação do pagamento de honorários foi feita pela fundação apenas em 13 de janeiro de 2003, depois que os serviços já haviam sido prestados. Segundo a Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina (PGE), a forma como se deu contraria as normas relativas aos contratos administrativos, “pois primeiro foram prestados os serviços e depois foi assinado o contrato”.
O relatório de identificação e delimitação do grupo técnico coordenado pela antropóloga foi aprovado pela Funai e publicado no Diário Oficial da União em 18 de dezembro de 2002. Depois que já estava pago, em 2003, foi encaminhado para o Ministério da Justiça, que só reconheceu a área como terra indígena em 2008 (e o processo ainda depende de homologação da Presidência da República para ser oficializado, o que até agora não foi feito).
Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), o ministro Augusto Nardes diz que a validação dos estudos pela mesma ONG que os elaborou é “algo que não deveria acontecer”. Ele explica que o laudo deveria ter caráter pericial e, por isso, pode acabar perdendo a isenção. Em entrevista ao DC, o ministro também se posicionou sobre a forma como as demarcações de terras indígenas são conduzidas:
– Há um caminho a ser percorrido para minimizar as incertezas do sistema. E um fator que contribui para a instabilidade é a interveniência de organizações nacionais e internacionais, supostamente de caráter humanitário, mas que alimentam suspeitas cada vez mais fortes de tentativa de desnacionalização dos territórios – diz Nardes.
O jornalista mexicano radicado no Brasil Lorenzo Carrasco estuda o tema há mais de 30 anos e publicou três livros sobre o indigenismo e organizações ambientalistas. Ele associa o poder das ONGs ao patrimônio gerado a partir de convênios com instituições internacionais que, segundo ele, injetam bilhões em projetos brasileiros. O interesse de ONGs indigenistas em ocupar os cargos seria a garantia de execução dos projetos conveniados, o que os permite manter o lucro, diz.
– Existe uma parcela de antropólogos que age por ideologia, que é a maioria. Mas existe outra que negocia e usa o índio como massa de manobra. A questão indígena mexe com o emocional das pessoas: “Nós chegamos aqui e os expulsamos”. Existe um sentimento de culpa. Só que é preciso dizer: a massa de demarcações já foi feita, 13% de todo o território brasileiro estão demarcados como terra indígena. Não se pode voltar no tempo e distribuir terra para uma população que não é a mesma de 500 anos atrás, como se não existissem leis – conclui Carrasco.