Estado responde ao procurador-geral da República sobre Defensoria Pública

O Estado de Santa Catarina está encaminhando informações sobre a recém-criada Defensoria Pública ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel. 

Na semana passada, a Procuradoria Geral da República mandou ofício ao governador do Estado, Raimundo Colombo, sugerindo mudanças na lei aprovada pela Assembleia Legislativa em 18 de julho e que instituiu a Defensoria Pública em Santa Catarina.

O governador pediu à Procuradoria Geral do Estado que se manifestasse sobre o tema, o que foi feito pelo procurador-geral João dos Passos Martins Neto, nesta quinta-feira (26).

Confira abaixo a íntegra da Informação PGE/GAB Nº 001/2012:

Ref.: Ofício PGR/GAB/Nº 972.

Senhor Governador,

Trata-se de expediente subscrito pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, recomendando a substituição do Projeto de Lei Complementar nº 0016.4./2012, relativo à criação e organização da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. Afirma Sua Excelência, a partir de representação formulada por Procuradores da República sediados em Santa Catarina, que o texto proposto, pelo seu teor, parece significar descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.270 e 3.892. Em essência, o nobre Procurador-Geral da República relaciona sua impressão inicial com os seguintes aspectos do referido Projeto de Lei: 1) “a possibilidade de a Defensoria Pública celebrar convênio, preferencialmente com a OAB, para implementação, de forma suplementar, das suas funções institucionais”; 2) a criação de “apenas sessenta cargos de Defensor Público, estando disponíveis, para provimento por meio de concurso, apenas vinte cargos”, número insuficiente “para cobrir cento e onze comarcas”. Ao final, o ilustre Procurador-Geral sugere a revisão da proposta a fim de que, entre outros, “todos os cargos de administração superior da instituição sejam exercidos de forma privativa por membros da carreira”.

É a síntese do expediente. O ofício PGR/GAB/Nº 972 está datado de 16 de julho de 2012, tendo sido recebido na Secretaria de Estado da Casa Civil em 20 de julho 2012. Ocorre que o Projeto de Lei Complementar nº 0016.4./2012 restou finalmente aprovado pela Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em dois turnos de votação, no dia 18 de julho de 2012, apenas aguardando sanção. Desse modo, conquanto respeitável a manifestação do Procurador-Geral da República, não é possível atender a recomendação de substituição do Projeto de Lei em questão, querendo parecer, salvo melhor juízo, que a mesma encontra-se prejudicada por falta de objeto. No entanto, registre-se que por não se cuidar de espécie normativa qualificada como pétrea ou dotada de rigidez absoluta, a Lei Complementar que virá a integrar a ordem jurídica estadual ao cabo do processo legislativo em curso poderá receber correções e aprimoramentos a qualquer tempo, a critério das autoridades politicamente legitimadas. Nesse sentido, as considerações do eminente Procurador-Geral da República guardam interesse e merecem detida atenção. 

A legislação estadual em processo de conclusão, data venia, não descumpre ou pretende resistir ao veredicto do Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.270 e 3.892. Em primeiro lugar, por sua natureza declaratória, típica dos processos objetivos do controle abstrato, bem como em homenagem ao postulado da separação de poderes, a decisão da colenda Suprema Corte não contém injunções concretas quanto ao conteúdo específico do conjunto de normas a elaborar. Decerto, dela decorre a imposição de substituição do modelo anteriormente vigente de prestação indireta do serviço social de assistência jurídica aos necessitados, declarado inconstitucional. Mas é exatamente em tal direção que dispõe o legislador estadual quando, inclusive alterando a Constituição do Estado, cria a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, órgão que passa a integrar a estrutura administrativa estadual e que responderá pela orientação e pela defesa jurídica das pessoas de baixa renda. Em segundo lugar, é da essência do processo legislativo na ordem democrática que o legislador, no exercício de sua liberdade de conformação jurídica, eleja critérios e promova escolhas no marco das opções políticas existentes, bem como que considere, em suas decisões, as limitações fáticas e jurídicas que restringem as possibilidades de ação estatal. Tais escolhas políticas e decisões contingentes, apenas porque podem contrariar interesses e aspirações, não devem ser confundidas com recusa, menos ainda deliberada, de afrontar a Suprema Corte.

De qualquer sorte, relativamente aos aspectos pontuais controvertidos no expediente do Exmo. Sr. Procurador-Geral da República, impõe-se lançar algumas considerações que tanto podem ser úteis para atualizar a informação disponível quanto para permitir uma melhor avaliação das soluções legislativas questionadas.

É uma premissa da legislação estadual aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado a de que a substituição do modelo anterior de prestação indireta do serviço público de assistência jurídica pelo novo, de prestação direta, através da Defensoria Pública, não poderia ser realizado de uma só vez, radicalmente. Tanto pressuporia a capacidade estatal de implantação imediata de uma superestrutura apta a garantir a universalidade do atendimento. Contudo, semelhante aptidão não existe, o que se deve a uma série de obstáculos de ordem fática e jurídica. De um lado (limitação fática), a vontade política do legislador está condicionada pelo volume dos recursos disponíveis, num contexto em que a receita, escassa, deve ser compartilhada para dar conta de obrigações nas áreas de saúde, educação, segurança, saneamento, sistema prisional, etc. De outro (limitação jurídica), há que atender ao imperativo de respeito às regras de responsabilidade na gestão fiscal, bem como a rigidez do direito administrativo, que submete às contratações feitas pelo público a procedimentos licitatórios que demandam tempo. De notar que, para cada unidade da Defensoria Pública a instalar, sem contar os servidores concursados, são necessários prédios, computadores, veículos, telefonia, internet, softwares, material de expediente, vigilância, limpeza, etc. Outra premissa relevante, subjacente à novel legislação e que se soma àquela precedente, é a de que o serviço de assistência jurídica à população carente, dada a sua essencialidade e, mais do que isso, dada a sua jusfundamentalidade, não admite interrupção e requer total continuidade.

Assim, pressuposta a impossibilidade de operação inicial em nível ideal e com força máxima, e a fim de assegurar tanto a continuidade do serviço como a universalidade do atendimento, o legislador estadual previu a possibilidade de celebração de convênios com órgãos e entidades, entre os quais a Ordem dos Advogados do Brasil e os escritórios-modelo dos cursos de Direito das Universidades. Sob o conceito normativo de suplementaridade ou subsidiariedade, pretendeu-se dotar a Defensoria Pública de meios de reforço à sua atuação no período de transição entre o modelo antigo e o moderno. A referência feita particularmente à Ordem dos Advogados do Brasil no projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo – que terminou por ser suprimida do texto final – decorre do fato de a mesma já possuir uma rede estruturada e organizada de profissionais cadastrados, o que facilita a operacionalização do sistema auxiliar. Além disso, por tratar-se de instituição respeitável, promotora da defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, sua cooperação com o poder público revela-se compatível com os fins sociais do serviço social de assistência jurídica. Cabe destacar que a legislação estadual faculta ainda o emprego, como instrumentos de apoio à Defensoria Pública, do credenciamento individual e do serviço voluntário (pro Bono), na forma da legislação federal de regência. As modalidades de apoio assim conferidas não implicam privatização, mas exprimem preocupação séria e política sensata em favor de bens tutelados pela ordem constitucional que, de outro modo, estariam ameaçados.

Por sua vez, o quantitativo de cargos foi fixado nos seguintes termos: 60 cargos de Defensor Público, 50 cargos de servidores de nível superior e 40 cargos de servidores de nível médio, totalizando 150. Todos os grupos estão organizados em carreiras e serão remunerados através de subsídio. O número é compatível com as necessidades estimadas para o início de operação das 21 unidades regionais da Defensoria Pública, estrategicamente posicionadas em todas as regiões do território catarinense. Atendeu-se, também, na definição do quadro, a necessidade de observar as imposições da lei de responsabilidade fiscal, evitando-se o risco, não meramente retórico, de extrapolação dos limites prudencial e de alerta em relação às despesas de pessoal da administração pública estadual. Considerou-se, ainda, – e não tem sido percebida a relevância desta motivação legal – que todas as projeções indicativas de necessidade numérica superior estão baseadas em estatísticas atuais que exprimem um cenário de conflitualidade que urgentemente precisa e poderá ser debelado a médio prazo a partir de programas eficazes de redução de litigiosidade. Se, para dar um único exemplo, o fornecimento de medicamentos no país deixar de ser um problema abandonado à resolução judicial (sob a forma de ações repetitivas), como razoavelmente se tem de esperar, grande contingente dos serviços da Defensoria Pública desaparecerá, e um quadro de servidores superestimado tornar-se-ia ocioso, com custo inaceitável para a sociedade. A legislação estadual faz uma aposta na reversão dos níveis de litigância, quase insanos, e permite, para o futuro, ultrapassada a fase inicial de implantação da Defensoria Pública, a acomodação das demandas de pessoal de acordo com a observação e a experiência. Cabe destacar, por fim, que a limitação de provimento de 20 cargos no primeiro concurso a realizar restou suprimida do texto finalmente aprovado, com a concordância do Poder Executivo. 

A propósito, é importante informar que, segundo consta, a Defensoria Pública da União em Santa Catarina conta com apenas 10 Defensores Públicos, sendo 8 lotados em Florianópolis e 2 lotados em Joinville. Ambas as unidades estão situadas na faixa litorânea, e a imensa maioria do território catarinense, inclusive os municípios que sediam Varas Federais, não possui cobertura presencial. Não bastante, a Defensoria Pública da União não possui quadro próprio de servidores, os quais estão, ainda segundo consta, vinculados ao Ministério do Planejamento. Na comparação, a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina apresenta, já em sua formatação inicial, estrutura mais organizada, potente e abrangente. 

Derradeiramente, cumpre considerar que, pelos requisitos contidos na Lei Complementar Federal nº 80, de 12 de janeiro de 1994, os cargos de Defensor Público Geral, Subdefensor Público Geral e Corregedor Geral, além dos membros do Conselho Superior, devem satisfazer determinados requisitos para a respectiva investidura, em especial, deter a condição de servidor estável na carreira. Tal fator inviabiliza o pronto atendimento da condição indicada pelos futuros membros da carreira de Defensor Público do Estado, que serão recrutados no primeiro concurso público e ingressarão em período de estágio probatório. O legislador estadual, corretamente entendendo indispensável o requisito da estabilidade, adotou disposição transitória segundo a qual, enquanto não houver servidor de carreira habilitado, os cargos de direção serão exercidos por advogados indicados pelo Governador do Estado, satisfeitos os requisitos dos 35 anos de idade, notório saber e reputação ilibada. No texto final, uma emenda do Poder Executivo ao Projeto de Lei, feita a fim de garantir a independência no exercício das funções, fixou a regra do mandato por dois anos, admitida a recondução. A norma, além de transitória, qualifica-se como “especial”, uma vez que regula matéria peculiar ao ente federativo e às circunstâncias locais. Assim, sua adoção pelo legislador estadual corresponde ao exercício legítimo de competência legislativa do Estado-Membro. Com efeito, a organização da Defensoria Pública das unidades federadas situa-se no âmbito da competência legislativa concorrente, cabendo à União fixar as normas gerais e, aos Estados, as normas especiais.  

É a Informação.

Florianópolis, 26 de julho de 2012.

JOÃO DOS PASSOS MARTINS NETO
Procurador-Geral do Estado